Fenômenos Incomuns - Núcleo AIFI

A VERDADE SOBRE HERCÓLUBUS

Luiz Augusto L. da Silva*

Nossa espécie é mais pateta do que normalmente admitimos para nós mesmos.

Neil deGrasse Tyson

            Para começo de conversa, embora possa parecer irrelevante (e, no fim das contas, é mesmo), é Hercólubus, ou Hercolubus? Se for uma palavra de origem latina, então a grafia correta seria sem acento: Hercolubus, mesmo em se tratando de um vocábulo proparoxítono. Na hora de traduzir para o português, escreveríamos Hercólubo, ou Hercólobo. Bem, deixemos para lá. Apenas para protestar contra as regras gramaticais, muitas das quais são fixadas de formas completamente arbitrárias, usarei Hercólubus, com acento. Também é a forma mais habitual encontrada por aí.

            Outro aspecto: qual é a etimologia do nome Hercólubus? Possui raízes mitológicas clássicas, ou não? Confesso que procurei bastante, e não encontrei nada. Se algum dos leitores tiver respostas, agradeço de antemão. Entrem em contato, através do e-mail luizastronomo@gmail.com.

            Agora chega de conversa, e vamos ao que realmente interessa. Que seja esclarecido de uma vez por todas: as imagens obtidas em 2020 pelas sondas espaciais de pesquisa solar SOHO e STEREO NÃO mostram o “planeta cometa”(?!) assassino denominado Hercólubus. Hercólubus é um mito. Hercólubus definitivamente não existe. Portanto, as notícias alarmistas de que a sua existência já foi confirmada pela NASA são FALSAS. São mentiras deliberadas ou, como é moda dizer hoje em dia, fake news. Não haverá surtos de terremotos, erupções vulcânicas, ou tsunamis induzidos pela aproximação de Hercólubus. As gravíssimas alterações climáticas que já estamos enfrentando são o resultado da ação exclusivamente humana, nada tendo a ver com Hercólubus. Hercólubus não está situado na constelação zodiacal de Cancer (Caranguejo), “apagado e sem rotação”(?!), e também não “irá se conectar com o centro magnético da Terra”, uma frase aliás, repetida aos quatro ventos mas que carece totalmente de significado, conforme pode ser constatado de imediato por qualquer pessoa dotada de um mínimo de instrução científica.

Quem é

            Hercólubus é o nome de um planeta mitológico, completamente fictício, mencionado no livro Hercólubus ou Planeta Vermelho, publicado em 1998, de autoria de um agricultor colombiano, depois iniciado em ciências ocultas, conhecido como V. M. Rabolú (1926 – 2000). Seu verdadeiro nome era Joaquin Enrique Amortegui Valbuena.

            Hercólubus estaria a cerca de 500 UA da Terra (1 UA equivale à distância média da Terra ao Sol, ou seja, 149.6 milhões de quilômetros), e seria “seis vezes maior” que o planeta Júpiter (“maior” em diâmetro?; “maior”em massa?; “maior” em volume?). Possuiria um período orbital de aproximadamente 26 mil anos (curiosamente igual ao período do movimento de precessão do eixo rotacional terrestre). Esses dados orbitais não batem com a terceira lei de Kepler, que estabelece uma relação matemática precisa entre o período sideral e o semi-eixo maior orbital de um planeta, o que, de per si, já basta para demonstrar, além de qualquer dúvida,  que Hercólubus não existe.

            Mas as fantasias não terminam por aí. Em sua última aproximação ao nosso planeta, supostamente há 13 mil anos, Hercólubus teria sido responsável pela destruição de Atlântida, continente lendário que também, com toda a certeza, nunca existiu (ver, por exemplo, o livro Atlântida, Fantasia e Realidade, de Fernando G. Sampaio, 1974, Editora Movimento, Porto Alegre).

Nibiru

            Na vertente pseudocientífica, Hercólubus tem sido relacionado a outros astros igualmente inexistentes, como Nibiru. A existência deste planeta hipotético foi sugerida em 1976 por um cidadão nascido no Azerbaijão de nome Zecharia Sitchin (1920 – 2010), autor de vários livros que seguem a linha danikeniana dos deuses astronautas, entre eles O Décimo Segundo Planeta. Nele, Sitchin argumentava que a humanidade descendia de uma raça extraterrestre denominada Annunaki, procedente de um planeta situado nos confins do sistema solar, cujo nome era Nibiru. A ideia da existência de uma sociedade inteligente autoconsciente tecnológica originada nas regiões geladas muito distanciadas do Sol já é, por si só, muito improvável.

            Modernamente os astrônomos especulam, sim, sobre a existência de um nono planeta no sistema solar, inclusive até mais de um, todos orbitando além da região transnetuniana conhecida como Cinturão de Kuiper, mas tudo isso nada tem a ver com Nibiru. Um exemplo: na edição de Abril de 2008 da revista científica profissional The Astronomical Journal (Astron. J., 135, 1161) Tadashi Mukai e Patryck Likawka, ambos da Universidade de Kobe, Japão, publicaram uma pesquisa onde concluíram ser possível a existência de um planeta transnetuniano com até dois terços da massa terrestre orbitando a mais de 100 UA do Sol, com inclinação orbital entre 20o e 40o em relação ao plano da eclíptica. Patryck foi nosso aluno durante o curso de graduação em Física numa das universidades em que trabalhamos durante muitos anos. Excelente aluno, por sinal. Podemos garantir que tanto ele quanto seu colega nem de longe consideram possível a existência de um planeta com as características inputadas a Nibiru. Se um mundo assim existisse de fato, as consideráveis perturbações gravitacionais que ele induziria nas órbitas de todos os demais planetas do sistema solar seriam facilmente detectáveis, algo que nunca foi observado. Portanto, é mais do que certo que Nibiru também não existe.

            Em síntese: Nibiru não é Hercólubus mas, como Hercólubus, não passa de pura fantasia. Aliás, a concepção esotérica de que Nibiru seja um planeta transnetuniano real dotado de um período orbital de 3600 anos cuja órbita intercepta as de todos os demais planetas, como se fosse um cometa de trajetória altamente excêntrica, é simplesmente absurda. Beira, mesmo, as raízes da estupidez porque, um planeta massivo com órbita solar exageradamente elíptica já teria destruído há bilhões de anos toda a arquitetura observada no sistema solar hoje em dia. Nem mesmo a Terra existiria mais em sua órbita atual. Qualquer estudioso de Mecânica Celeste sabe disso.

Astros Reais, Outros Nem Tanto

            Na esteira mitológica de Hercólubus/Nibiru, encontramos alguns astros reais tomados pelos fictícios. É o caso da Estrela de Barnard, descoberta em 1916 pelo astrônomo norte-americano Edward Emerson Barnard (1857 – 1923), uma obscura anã vermelha distante 6 anos-luz do sistema solar, dotada de grande movimento próprio. Na realidade, esta estrela é a segunda mais próxima do Sol, depois do sistema estelar tríplice Alpha Centauri. Imagens desse astro aparecem em alguns sites na Internet, como prova da existência de Hercólubus… Obviamente trata-se de uma falácia.

            Aqui mesmo dentro do sistema solar, o cometa C/2010 X1 (Elenin), que passou pelo periélio em 10 de Setembro de 2011 muito próximo ao Sol (tanto é que se fragmentou…) chegou também a ser confundido com Nibiru, uma vez que este último, tendo falhado em colidir com a Terra em 2003, conforme previra Nancy Lieder, medium que diz comunicar-se com seres extraterrestres vindos de Zeta Reticuli, a data fatídica acabou sendo transferida para 2012 (lembram-se de 2012?). A confusão deste cometa com Nibiru constitui outro disparate.

            Em 1984, a revista especializada The Astrophysical Journal publicou um paper (Houck, J. R., et al., Ap. J., 278, L63) sobre fontes celestes de radiação infravermelha descobertas pelo satélite IRAS (InfraRed Astronomical Satellite) sem contrapartes ópticas conhecidas. Os defensores de Nibiru argumentaram que o planeta assassino poderia estar entre elas. De novo, ficou provado que eles estavam errados, uma vez que aquelas fontes misteriosas foram posteriormente identificadas como sendo galáxias de luminosidade ultra-alta [Houck, J. R., et al., (1985), Ap. J., 290, L5].

            Também não podemos esquecer de Nêmesis, uma estrela anã marrom (ou anã vermelha) hipotética que seria companheira do Sol, e cuja existência foi sugerida também em 1984 por Davis, Hut e Muller (Nature, 308, 715). A existência deste astro explicaria a aparente periodicidade de 26 Mega-anos dos eventos de extinções em  massa de espécies biológicas apontada por Raup e Sepkoski (1984, Proc. N. Acad. Sci., 81, 801). A pesquisa destes paleontólogos cobria os últimos 250 Mega-anos, mas um estudo posterior [Melott, A. L., e Bambach, R. K., (2010), Mon. Not. R. Astr. Soc., 407, L99] identificou uma periodicidade de 27 Mega-anos recuando até a Explosão Cambriana, ou seja, meio bilhão de anos no passado. A cada passagem pelo periélio, na região interna do sistema solar, Nêmesis perturbaria a estrutura da Nuvem de Oort, provocando chuvas de cometas, aumentando as chances de colisão destes astros com a Terra e os demais planetas, favorecendo assim as extinções atestadas pelos registros fósseis.

            Nêmesis era o nome da deusa grega do destino, do equilíbrio, e da vingança. A ideia original era que Nêmesis orbitava o Sol a cerca de 1.5 anos-luz de distância, o que corresponde, pela terceira lei de Kepler, a um período sideral de 26 Mega-anos. Mas se esta estrela realmente existisse, já deveria ter sido encontrada em surveys infravermelhos. Isso não aconteceu. Como já podemos dizer que possuímos surveys razoavelmente completos das regiões próximas ao Sol, é bastante seguro afirmar que Nêmesis também não existe.

            O curioso é que ela até pode haver existido, mas durante um período anterior há 4 Giga-anos, quando a Terra não era nem habitada por microorganismos, pois algumas pesquisas (e.g., Sadavoy e Stahler, 2017, Mon. Not. R. Astr. Soc., 469, 3881) sugerem que a maioria das estrelas nasce em sistemas binários instáveis, divorciando-se depois de suas companheiras estelares. Este poderia ter sido também o caso do Sol.

Imagens             As imagens que voltaram a ser notícia em Agosto de 2023 não são recentes. Veja-se a Figura 1. E não são as primeiras a mostrarem, alegadamente, o “segundo sol”. O astrônomo inglês Paul Cox, que defende esta ideia, está completamente equivocado, mesmo sendo profissional. A teoria conspiracionista segundo a qual a NASA (sempre ela…),    em     comum    acordo   com   os   governos   de   todo o    mundo,

Fig. 1
Imagem da sonda solar STEREO, que supostamente mostraria o “segundo sol”. Crédito da imagem: NASA.

deliberadamente esconde a existência deste “segundo sol”, é ridícula. É literalmente impossível esconder a presença de um grande corpo intruso no sistema solar porque, conforme já mencionamos mais acima, suas perturbações gravitacionais seriam detectadas cedo ou tarde por inúmeros outros pesquisadores independentes, não vinculados à NASA ou aos governos. Além disso, sendo maior do que Júpiter, aquele astro brilharia mais que o planeta gigante no céu. Apenas para lembrar, Júpiter apresenta uma magnitude visual média da ordem de -2.5, facílimo de ver a olho-nu.

Delírios sem Limites

            Acreditem, se quiserem: uma nova versão do mito afirma que Nibiru seria um planeta pertencente ao sistema estelar de Nêmesis… Então não sabemos quem seria o “assassino”: se Nêmesis ou Nibiru. Vai ver, o verdadeiro culpado é o mordomo…

            Anedotas à parte, a verdade é que o desfile de inverdades segue sem freios, relacionando desde centúrias de Nostradamus até passagens do Livro do Apocalipse. Dizem que a Terra não irá experimentar um choque direto com o segundo sol (afinal, ele é um planeta ou uma estrela?!), por causa da “camada etérea” que nos oferece proteção, ou seja, a magnetosfera, mas vai acontecer uma chuva de meteoros muito grandes. Menos mal, afinal os meteoros são meros fenômenos luminosos que acontecem na ionosfera, camada superior da atmosfera da Terra, e que não chegam a atingir o solo. Se fosse uma chuva de meteoritos, aí sim, eu ficaria preocupado com o meu telhado…

            Uns dizem que a Terra não vai sair da sua órbita, enquanto outros afiançam que ela vai parar no cinturão de asteroides, entre as órbitas de Marte e Júpiter. Meu conselho: pelo sim, pelo não, é melhor aproveitar as liquidações de final de inverno para comprar agasalhos bem pesados, pois se estes doidos estiverem certos, vamos passar muito frio!

            Mais: a Lua será ejetada da sua órbita, o eixo de rotação terrestre vai “verticalizar”, e os ET’s poderão vir nos ajudar. É bom parar por aqui.

            É impressionante como notícias e ideias absurdas proliferam com eficiência na sociedade moderna. Igualmente impressionante é como não faltam ignorantes para acreditar em tudo isso. Estamos descendo a ladeira rumo a um mergulho em um oceano profundo de obscuridade cultural e científica. E as mídias digitais favorecem tudo isso. Hoje temos acesso a muita informação. Mas nem todos os conteúdos prestam. O lixo convive lado a lado com o luxo, sem cerca divisória. Como já disse o escritor e filósofo italiano Umberto Eco (1932 – 2016), citado pelo meu colega e amigo professor Délcio Basso, vice-presidente do Conselho Curador da Rede Omega Centauri: a Internet deu plena voz aos imbecis.

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* Luiz Augusto L. da Silva preside a Associação para Investigação de Fenômenos Incomuns – AIFI – uma organização civil de ceticismo científico destinada ao estudo e esclarecimento de fenômenos estranhos constituída em 2006.

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